Ouvir a Notícia
Por um breve período entre os anos de 1945 e 1948, Lençóis Paulista teve um nome diferente que deixou uma marca significativa na história e na cultura do município. Hoje nome de bairro, "Ubirama", ao contrário do que pode se imaginar, não tem origem indígena relacionada aos povos originários que habitaram nossa região. Trata-se, na realidade, de uma criação de um político lençoense.
O nome foi um mistério por muito tempo, com algumas possibilidades levantadas por historiadores e linguistas, mas descobertas recentes feitas em exemplares antigos de um jornal local põe fim à incerteza e revela uma lista variada de opções e uma decisão ligada à maior cultura de plantação da época na cidade.
O REMAPEAMENTO DO BRASIL
Antes uma prerrogativa do Congresso Nacional, a Constituição de 1934 passou a responsabilidade da definição dos limites do território nacional para a União. No governo Getúlio Vargas (1882–1954), o processo se intensificou. Ainda antes do golpe de 1937, Vargas havia criado o Instituto Nacional de Estatística; e, já como ditador, decretou, em 2 de março de 1938, o remapeamento do território nacional.
Em 1943, o Decreto-Lei 5.901 estabeleceu normas para o novo mapeamento, incluindo critérios para escolha de novos nomes. Entre as regras estavam a eliminação de repetições de topônimos e a preferência por denominações indígenas. Veja:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, DECRETA:
[...]
Art. 7º Ficam estabelecidas as seguintes normas para a eliminação, no País, da repetição de topônimos de Cidades e Vilas, a efetivar-se no novo quadro territorial em preparo:
I - Quando duas os mais localidades tiverem a mesma denominação, esta prevalecerá para a de mais elevada categoria administrativa ou judiciária, na seguinte ordem de precedência: Capital, sede de Comarca, sede de Têrmo, sede de Município, sede de Distrito.
II - No caso de haver mais de uma localidade da mesma categoria com o mesmo nome, êste será mantido naquela que o possuir há mais tempo.
III - Como novos topônimos, deverão ser evitadas designações de datas, vocábulos estrangeiros, nomes de pessoas vivas, expressões compostas de mais de duas palavras sendo, no entanto, recomendável a adoção de nomes indígenas ou outros com propriedade local.
IV - Não se consideram nomes novos, e portanto não estão sujeitos ao disposto no item precedente, os casos de restabelecimento de antigas designações ligadas às tradições locais, vedadas, porém, as composições de mais de três palavras.Parágrafo único. Exceções a essas normas, no que toca ao direito de prioridade na nomenclatura, serão admitidas, se ocorrerem motivos imperiosos, mediante acôrdo entre os Governos das Unidades Federativas interessadas.
A OUTRA LENÇÓIS
Como já existia uma cidade chamada Lençóis, fundada anteriormente na Bahia, nossa Lençóis precisaria adotar outro nome.
Bandeira do Município de Lençóis, na Bahia
Para conduzir esse processo, a cidade acionou o Diretório Municipal de Geografia e Estatística, composto pelo então prefeito Bruno Brega como presidente, o secretário Evaristo Canova e os membros Ângelo Delgallo, Lídio Bosi, Elizario Marciano da Silva, João Baptista Vianna Nogueira e Paulo da Silva Coelho.
Criado anos antes pelo Ato nº 33 de 18 de outubro de 1938 em Lençóis, o Diretório tinha como função levantar e organizar informações sobre o território e a população do município, padronizar dados geográficos e encaminhá-los ao Conselho Nacional de Geografia, auxiliando no planejamento e no desenvolvimento local.
AS PROPOSTAS
Desde muito cedo cogitou-se fazer referência à maior riqueza da região: a cana-de-açúcar. Em 1939, A. Moretto Sobrinho registrava que Lençóis produzia 5 milhões de litros de aguardente por ano, o que rendeu à cidade o apelido de “Princezinha dos Canaviais”. Surgiram então propostas como Canápolis e Alcolândia.
Entretanto, o decreto de Vargas recomendava a adoção de nomes indígenas. Nesse espírito, o lençoense Gino Augusto Antonio Bosi apresentou sugestões como “Canamairí” (cidade das canas), “Canatiba” ou “Canatuba” (abundância de canas) e “Canarama” (região das canas). Essas criações foram elaboradas por J. Davi Jorge (Aimoré) em 9 de setembro de 1943 a pedido de Bosi e publicadas no jornal O Eco em 19/09.
Poucos dias depois, porém, uma nova proposta se destacou. O jovem Paulo Zillo, que mais tarde, em 1960, seria vereador e logo em seguida, em 1964, prefeito de Lençóis Paulista, enviou uma carta ao jornal O Eco apresentando palavras inventadas por ele a partir de variantes de línguas indígenas brasileiras.
No dia 26 de setembro de 1943, o O Eco publicou sua carta com sugestões, dentre as quais estava a que viria a ser escolhida.
1.0) Tacoaree (cana de açúcar) – igbig (terra), daria “Tacoareeigbig” ou, de acordo com as alterações fonéticas, perfeitamente admissíveis, sem prejuízo do sentido, teríamos a expressão “Tacuaribi”, significando “terra da cana de açúcar”.
2.0) Tacoaree–tiba (abundância, segundo a carta publicada no “O Eco” de 19-9), daria, pelo mesmo processo evolutivo “Tacoaretiba” ou “Tacoaritiba”, abundância de cana de açúcar.
3.0) Tacoaree–tuba (abundância, segundo a mesma carta), resultaria “Tacoaretuba” ou “Tacoarituba”, com o mesmo significado do anterior.
4.0) Tacoaree – rama (região, vide “O Eco” de 19-9) dar-nos-iam as seguintes palavras: “Tacoarerama” ou “Tacuarirama”, região da cana de açúcar.
5.0) Uubaee (cana de açúcar) – igbig (terra), resultaria “Ubaeeigbig” que, segundo a evolução natural daria “Ubaembí”, pela desnasalação do grupo “em” resultaria “Ubaebí”, cuja melhor prosódia seria “Ubaibí” (terra da cana de açúcar).
6.0) Caui (aguardente) – igbig (terra) – “Cauiigbig”, o que vem dar “Cauimbí” ou, pelo fenômeno da desnasalação – “Cauibi” (terra da aguardente).
7.0) Cauí – rama – “Cauirama” – “Cauinrama”, ou melhor “Cauíranoa” (região da aguardente).
8.0) Uubaee-rama – “Uubae-erama” – “Ubaenrama” – “Ubairama” ou o que soa melhor – “Ubirama” (região da cana de açúcar).
Palavras híbridas (português e tupi)
1.0) Cana-nhu (campo) “Cananhu” – “Cananhun” ou “Cananhuns” (campo da cana de açúcar).
2.0) Cana-igbig – “Canaigbig” – “Canaibí” ou melhor, “Canabí” (terra da cana de açúcar).
Zillo ainda explica (grafia original):
Quero frizar que essas transformações as quais submetí as palavras acima grifadas, são perfeitamente lógicas, e, por certo, seriam essas as formas atuais, se as mesmas tivessem sido adotadas de há muito.
É o caso de inúmeras expressões genuinamente brasileiras, derivadas do tupí, do kainjgacg, do kaiapó, etc., que chegam a desmentir a própria origem, tal a evolução que sofreram através do linguajar corrente. Pronunciar aquelas expressões de acôrdo com a grafia, seria impraticavel, mesmo porque, hoje tudo é simplificado, e muitas consoantes são mudas. Mas, o que devemos considerar de maior alcance, são os inúmeros fenômenos de evolução da linga, tais como as permutas, quedas, contrações, transposições, acréscimos, etc., provocando outras tantas alterações fonéticas. Não bastando isso, vem a nosso favor a lei do mínimo esforço, cuja tendência é a realização e a consecução do fim da linguagem, da maneira mais simples.
Desejo frizar, mais do que tudo, que o trabalho é o mais despretencioso possivel, servindo apenas como elemento de sugestão, desde que a mesma está sendo pedida, por intermédio do «O E’co».
Cordialmente,
Paulo Zillo
É curioso que haja uma palavra para a cana-de-açúcar no Tupi Antigo, já que a planta só foi introduzida no Brasil pelos portugueses depois de 1500. A palavra "Uubaeẽ", utilizada por Zillo para compor "Ubirama" não aparece em muitos compêndios das línguas indígenas, mas é possível encontrá-lo no segundo volume do Vocabulário na Língua Brasílica, de Carlos Drumond, baseado nos estudos do padre Serafim Leite sobre o Tupi Antigo e em um dicionário da fauna e flora no Tupi-Guarani do Museu Paraense "Emílio Goeldi".
A DECISÃO FINAL
Com a extinção do Poder Legislativo por Vargas, coube ao Diretório Municipal de Geografia e Estatística a decisão final. Embora tenha registrado em ofício ao interventor federal José Carlos de Macedo Soares sugestões como “Rio Lençóis” e “Lençóis-Paulista”, a proposta criada por Paulo Zillo acabou prevalecendo.
Assim, em 1945, a cidade passou a se chamar oficialmente Ubirama, ou seja, região da cana-de-açúcar.
Página do livro de atas do Diretório Municipal de Geografia e Estatística
OUTROS SIGNIFICADOS
Anos depois da mudança, J. David Jorge (Aimoré), o mesmo que havia enviado sugestões a Gino Bosi, publicou algumas possibilidades de tradução do vocábulo no jornal Correio Paulistano, na edição de 26 de agosto de 1948. Ao que tudo indica, ele não foi informado da intenção original de Paulo Zillo.
Ubirama - Vocabulo composto de origem tupiniana. Este termo pode ser interpretado por varias formas:1º - Estimavel ventura. De Ubi, estimavel, preferivel, e rama, ventura (no norte do país, ventura é catuçáua ou catuçaba).2º - Estimavel região. De Ubi, estimavel, e rama, região, país, patria (conforme os casos, tambem ocorrem: tetama, retama, tama, tetã, etc.: terra, patria, região).3º - A verde região, equivalendo a "região das matas, dos bosques, das florestas". De Ubi ou Obi, verde, e rama, região, patrias, etc.. Entre os selvicolas do Amazonas e Pará, o termo que designa o verde é Iakira.4º - Região das terras, se Ubi estiver por Yby, pois era frequente na lingua tupí a permuta do Y ou I pelo U. Exemplos: Ibirajára, Ubirajara; Iberába, Uberába; Ibirá, Ubirá; Itú, Utú; Taubaté, Taibaté, etc., etc..A palavra portuguesa "Lençóis", traduzida para a Lingua Geral é: IA-MIÇAUA-ETA.
Seguindo a ideia de Aimoré, portanto, e com a ajuda de documentos históricos como exemplares antigos de jornais e dos dicionários do Dicionário tupi (antigo) - português, Moacyr Ribeiro de Carvalho,1987; Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil, Eduardo de Almeida Navarro, 2013, e Dicionário da língua geral no Brasil, Cândida Barros, Antônio Luís Lessa, organizadores, 2015; também podemos chegar a outras traduções possíveis, elencadas abaixo:
Em primeiro lugar, RAMA é a parte comum de todas as traduções, e vem da palavra "TETAMA", que significa: terra, região, nação, lugar de origem. Já UBI pode ter muitas interpretações. Abaixo, uma seleção das traduções possíveis.
TERRA VERDE - Se "ubi" estivesse para OBY, que significa verde, azul ou roxo. No tupi antigo, essas três cores tinham o mesmo nome, e, em certos casos, usava-se adjetivos para diferenciá-las.
TERRA DAS PALMEIRAS - Se "ubi" estivesse para UBĨ, que os povos indígenas usavam para denominar vários tipos de palmeira. Uma história popular da cidade também conta que essa palavra dizia respeito à grande quantidade de um tipo de capim conhecido como "favorito".
REGIÃO DE TERRA - Se "ubi" estivesse para YBY, que significa terra, no sentido natural. A pronúncia do ípsilon no tupi antigo era um híbrido das pronúncias de I e U, como no U na língua francesa.
Placa de identificação de veículos da década de 40 de Ubirama.
Parte do acervo do Museu Alexandre Chitto.
UM NOME INDESEJADO
No dia 3 de maio de 1948, na 4ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Lençóis Paulista (à época Ubirama), o presidente Gino Augusto Antônio Bosi apresentou aos vereadores um abaixo assinado da população pedindo a troca do nome da cidade, de Ubirama para Lençóis Paulista. Consta na ata:
"Aos três dias do mês de maio de mil e novecentos e quarenta e oito, realizou-se a quarta sessão ordinária na sala das sessões da Câmara Municipal de Ubirama. [...] o sr. Presidente pediu ao 2º secretário, Virgilio Capoani, para fazer a leitura de 2 abaixos assinados enviados à Assembleia Legislativa do Estado, sendo que o primeiro é dos moradores do Bairro Barrinha, desmembrado em 1938, que agora pleiteiam a sua volta a este município, e o 2º é da população de Ubirama, pedindo a troca do nome de Ubirama, para Lençóis Paulista." Trecho do Livro de Atas que compreende o ano de 1948, arquivado no acervo histórico da Câmara Municipal de Lençóis Paulista.
A população não se conformou com a mudança, e depois da volta do Poder Legislativo e a reinstituição da Câmara Municipal, em 1947, Ubirama buscou regatar seu nome original pelo poder do povo. O abaixo assinado apresentado aos vereadores em maio de 1948 virou Resolução na 21ª Sessão Extraordinária daquele ano. Consta na ata da sessão:
“O senhor Presidente, esclarecendo à Casa, declarou que esta sessão foi convocada exclusivamente para tratar deste assunto, que é de grande importância para o Município, pois tratava-se da troca do nome de Ubirama para Lençóis-Paulista, troca esta pleiteada pela população junto à Câmara dos Deputados Estaduais.” Trecho da pág. 31 do Livro de Atas que compreende o ano de 1948, arquivado no acervo histórico da Câmara Municipal de Lençóis Paulista.
Então, na véspera de Natal de 1948, a cidade teve seu desejo atendido pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e pelo Governador Adhemar Pereira de Barros (1901-1969), que, ouvindo o clamor ubiramense, promulgou a Lei nº 233 que, atualizando o quadro territorial do estado para o quinquênio 1949-1953, devolveu aos lençoenses seu nome de origem, agora acrescido do "Paulista".
O LEGADO DE "UBIRAMA"
O episódio de “Ubirama” mostra como uma decisão política, imposta por circunstâncias externas, acabou se transformando em parte da memória e da identidade local. Ainda que tenha sido rejeitado pela população e rapidamente substituído, o nome sobreviveu no bairro, em instituições e até em lembranças familiares, servindo como registro de uma época de forte centralização do poder no Brasil.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que nasceu de um projeto governamental sem verdadeira intenção de valorizar os povos indígenas, o termo acabou trazendo à história de Lençóis Paulista um elo simbólico com a riqueza e a diversidade das línguas nativas do Brasil.
AGRADECIMENTOS
Publicado em: 07 de junho de 2024
Publicado por: Comunicação
Cadastre-se e receba notícias em seu email
Categoria: História da Câmara