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O primeiro "Código de Posturas" da Câmara Municipal da Villa dos Lençóes

Começando a se organizar, a pequena vila de Lençóes criou suas primeiras "posturas" em 1870

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Na sessão ordinária do dia 24 de março de 1870, os vereadores terminaram a redação do primeiro Código de Posturas de Lençóis e enviaram-no para a aprovação da Assembléia Provincial de São Paulo.

Estavam presentes David Manuel Lopes (atuando como Presidente), Francisco Teixeira da Silva Pinto, Vicente Ferreira da Silva Lopes, Joaquim Rodrigues de Camargo, Custodio José Vieira e Serafim Corrêa de Moraes.

Em 11 de janeiro de 1873, no entanto, a Câmara ainda não tinha recebido resposta da Assembléia, apesar de ela ter dado um parecer apontando artigos que deveriam ser suprimidos ou alterados. Os vereadores lençoenses, então, enviaram novo ofício às autoridades provinciais, já que “até agora esta Camara não tivesse solução alguma arespeito apesar de muitos officios que tem dirigido a essa Presidencia em tal sentido”.

"[...] esta Camara tem soffrido muito” disseram os vereadores, “porque todos já sabem que esta Camara não tem posturas para reger, e então não pagão direitos e estão promptos a questionarem, e em vista pois esta Camara remette a V. Excª um novo código de posturas para ser approvado visto que o codigo de posturas que esta Camara remetteu é de suppor-se que ache nessa Secretaria perdido [...]"

Depois dessa primeira confusão, Câmara e Assembléia conseguiram se comunicar e aprovar um código. Os meses foram se passando, artigos foram sendo incluídos e suprimidos, e o código foi tomando mais forma. Mas aqui vamos nos debruçar apenas sobre a primeira versão do código, finalizada pelos vereadores em 24 de março de 1870 e analisado pela Assembléia em 1871.

 

OS "CÓDIGOS DE POSTURAS"

Fontes valiosas para conhecer e entender a história urbana no final do século XIX, os Códigos de Posturas funcionavam como uma “Lei Orgânica Municipal” da época, uma coleção de princípios legislativos regrando o convívio na cidade e seu entorno rural. Eles também eram instrumentos administrativos e policiais que buscavam garantir saúde, “moralidade”, ordem e sossego nas cidades.

A Constituição de 1824 e o Código do Processo Criminal de 1832 davam às vilas a autonomia de criarem seus próprios Códigos de Posturas, mas até 1870, Lençóis era regida pelas regras do Código de Posturas da cidade de Botucatu, que tinha sido “emprestado” pelos vereadores em sessão do dia 21 de julho de 1867, um ano após a elevação da freguesia a “vila”.

A nova legislação não se distanciaria muito daquela já herdada de Botucatu, mas contaria com alguns incrementos interessantes. Grande parte dos novos artigos criados pelos vereadores lençoenses no dia 24 de março (do 71 ao 88) são artigos que, curiosamente, dão mais poder ao presidente da Casa.

Enquanto o Código de Posturas de Botucatu não menciona autorizações ou licenças exclusivamente dadas pela figura do presidente da Câmara, no de Lençóis, as vezes não é suficiente a concessão do órgão, especificando que quem concede o direito de comprar terrenos do patrimônio e autoriza a construção de casas é especificamente o presidente. Esses artigos foram posteriormente questionados pela Assembléia Legislativa por criarem poderes sobre questões que não competiam às Câmaras.

O conteúdo do código mostra que a Câmara exercia um controle centralizado sobre a vida urbana e rural de Lençóis, com amplas atribuições que incluem a nomeação de funcionários, regulação do espaço urbano, poder punitivo, controle econômico e gestão de terrenos.

 

URBANIZAÇÃO

Uma das maiores preocupações expressas no documento é com a urbanização adequada e ordenada do centro da cidade, com regras bem específicas sobre os limites de tamanho de construções e o alinhamento delas. Por causa disso, uma das funções mais importantes no corpo de funcionários da Câmara era a de Arruador.

Art. 1º
O arruador desta Villa e das povoações do Municipio serão nomineados demittidos e juramentados pela Camara; terão a seu cargo o esquadro e alinhamento de todas ás ruas e travessas das povoações e será obrigado a demolir e reedificar a porção de edificios que por sua causa forem edificados fóra de regra.

O arruador recebia 1$000 réis “por cada frente que alinhar” e seguia regras estipuladas pela Câmara, como por exemplo, a que dizia que o alinhamento das ruas seria feito com base no esquadro entre a rua principal e “o melhor edificio que nella se achar” (art. 4) e que elas teriam 60 palmos (13,5m) de largura e os quarteirões, 40 braças (73m).

Também havia regras rígidas sobre a construção das casas. Para evitar multas, que iam de 2 a 10 mil réis, as construções tinham que seguir o alinhamento e nivelamento aprovados pelos funcionários da Câmara, e até a medida das portas e janelas eram padronizadas. Portas tinham 1 metro e meio de largura e 3 metros de altura, e as janelas, 1 metro de largura e 2 de altura. As casas não podiam ser mais altas que 4,5 metros.

Foto de Lençóis Paulista na década de 1920
ACERVO ALEXANDRE CHITTO / ARQUIVO MUNICIPAL

ECONOMIA

O centro urbano de Lençóis se desenvolveria a partir de sua capela e de seu centro comercial. A população, em sua grande maioria residente em sítios e fazendas nas redondezas, vinha à Rua do Commercio (atual Rua XV de novembro) em busca de sanar suas necessidades e fazer negócios.

O Código de Posturas tentava regular o comércio, a agropecuária e até espetáculos artísticos do município, todos permeados pela mão de obra escrava. De acordo com o censo da mesma época, 10,8% da população lençoense era escravizada. A grande maioria trabalhava na lavoura, nas próprias fazendas de alguns dos mesmos vereadores que redigiam as leis do Código de Posturas.

As autoridades inclusive podiam ordenar que os donos de escravos residentes no município “emprestassem” seus escravos para trabalhar em obras públicas, como mostra o artigo 63:

Art. 63º
Os caminhos de Sacramento será feitos de mão comum. São obrigados á factura de caminho todo os homens livres maiores de 14 annos. Os donos de escravos mandarão duas terças partes dos seos escravos maiores de 14 annos.

Mas os artigos do primeiro código não seriam suficientes. Em 6 de junho de 1874, a Câmara enviou à Assembléia novos artigos para regrar o comércio, que precisavam de aprovação urgente. Uma seca inesperada havia criado um ambiente propício aos especuladores. Na petição, consta o desabafo das autoridades lençoenses:

[...] a grande secca fora de tempo no anno proximo passado, muito concorreu para irregularidade das colheitas n’este Municipio, e que porisso as colheitas dos generos alimenticios no corrente anno tem sido diminuta aponto de haver miseria de mantimentos com o que muito tem de soffrer a classe menos abastada, dando afim motivo para algumas pessoas arrematarem as colheitas dos agricultores dos generos de primeira necessidade para depois revenderem por preços fabulosos que a classe indigente não os poderão comprar, ficando por essa razão expostos afome.

"Não havendo pois outros meios com que esta Camara possa prevenir as necessidades que podem sugerir dos abusos praticados por especuladores não só do Municipio, como de fóra como se deu ainda o anno passado de entrarem tropas a acarretarem os mantimentos que existião ficando os habitantes sem muito com o que muitas gentes soffrerão e inda continuão asoffrer, e porisso tomou esta Camara a deliberação de organizar um additamento a as posturas actuaes [...]

A regulamentação das atividades comerciais e a arrecadação de impostos e taxas era a principal prioridade da administração. Havia impostos sobre corridas de cavalos, gado e porcos exportados, abate de reses (animais cuja carne é consumida), venda de açúcar, café e aguardente, negócios de "generos da terra", trânsito de carros (anual), escritórios de advogados/solicitadores e tabeliães/escrivães.

A obtenção de licenças era mandatória para diversas atividades, como corridas, negócios locais, mascates de fora, venda de águas-ardentes, e mesmo para tirar esmolas de fora do município. Mascates de outros municípios eram especialmente visados, proibidos de vender certos bens sem pagar taxas elevadas, refletindo a proteção ao comércio local ou a prioridade em taxar atividades externas. Abaixo, um resumo dos impostos e taxas.

Categoria do Imposto

Atividades Tributadas

Espetáculos Públicos

Corridas de cavalos e diversas apresentações (teatro, circo, mágicas) de companhias de fora.

Comércio e Atividades Econômicas

Exportação de gado e porcos, venda de açúcar, café e aguardente, negócios de gêneros da terra, licenças para mascates de fora, venda de águas-ardentes (estanque), aferição de pesos e medidas.

Serviços Profissionais

Escritórios de advogados/solicitadores e atividades de tabeliães/escrivães.

Infraestrutura/Trânsito

Trânsito anual de carros na Villa (por jornal).

Impostos Diversos

Tirar esmolas com bandeiras religiosas de outros municípios e construção de represas (parys).

 

O código também regulava o comércio para garantir a proteção ao consumidor, proibindo a venda de gêneros falsificados ou deteriorados e o uso de pesos falsos, com exigência de aferição regular e penalidades para vendedores e até para o aferidor desonesto.

 

SAÚDE PÚBLICA

É de se imaginar que a situação de um município em formação no final do séxulo XIX não era das melhores no que se refere à saúde pública. Com o crescimento do centro urbano, as doenças contagiosas começaram a se alastrar pelo território, e as autoridades pouco sabiam sobre como evitá-las. Pensava-se, por exemplo, que o cheiro do apodrecimento dos mortos trazia doenças pelo ar.

Os artigos 13, 15 e 16 tratam de limpeza. Era proibido “lançar cisco, lixo, ou animaes mortos nas ruas desta Villa”, e nos “quintaes, pateos ou cercados” não era permitido “conservar qualquer cousa em estado de putrefação ou cujo cheiro possa infectar a atmosphera e offender a salubridade publica”. Na água da povoação, não se podia jogar “immundicies ou cousa que infecte ou suje a agua”.

No cemitério, devia-se seguir regras específicas para o enterro. As crianças eram enterradas a 6 palmos, e o restante da população, a 8. Se as regras fossem descumpridas, o coveiro e o sacristão (sacerdota que benzia os mortos e organizava os aspectos religiosos do enterro) seriam multados em 10 mil réis.

O código também promete fiscalizar o comércio para verificar como ele mantém a carne “verde” (não fresca) e a quem as boticas vendem remédios venenosos. Escravos não podiam comprar remédios venenosos, provavelmente para não usarem como arma contra seus donos.

 

CULTURA

Lençoenses eram proibidos de praticar touradas (art. 37), mas caçar perdizes era permitido (a não ser nos meses de julho e novembro) (art. 40). Correr a cavalo sem necessidade era passível de multa, assim como disparar armas de fogo dentro da povoação, mas só durante a noite*.

Jogos nas tabernas eram proibidos (art. 21), e os espetáculos de entretenimento que por ventura ocorressem no município deveriam pagar taxas para que pudessem ser apresentados caso a companhia fosse de outro lugar. As apresentações de entretenimento mencionadas no código nos dão uma ideia do que divertia um lençoense do século XIX:

Art. 35º
Fica creado o imposto de espetaculos publicos de qualquer natureza representado por companhia de fóra do Municipio do modo seguinte:

§ 1º Espetaculos de companhias de cavallinho por cada noite 10$000 réis.
§ 2º Espetaculo de barbantins por cada dia ou noite 5$000 réis.
§ 3º Espetaculo de magicas por cada dia ou noite 5$000 réis.
§ 4º Espetaculos Drammaticos por cada noite 10$000 réis.

* No código de posturas de Botucatu, era proibido disparar armas de fogo a qualquer hora do dia, mas os vereadores lençoenses decidiram que aqui essa proibição seria apenas para o período noturno.

 

ANIMAIS

Em Lençóis era “inteiramente prohibido a creação e conservação de cães”. Os cachorros que fossem encontrados pela cidade eram mortos, a não ser que fossem da raça perdigueiro e tivessem donos (art. 34). A forma de matar os animais não era estipulado pelo código, e ficaria a cargo da Câmara. Os únicos animais que podiam ser criados na cidade eram as vacas e as cabras leiteiras (art. 33 e 67). Sobrava até para as abelhas (art. 28)!

A presença dos animais na área urbana era um desafio significativo. As posturas proibiam andar montado em animais bravos na povoação (art. 25), recolher gado bravo dentro da povoação (art. 26), e manter animais cavalares, muares ou racuns soltos em terras lavradias (art. 29). A conservação de gado na Villa e subúrbios era restrita a uma vaca de leite por chefe de família, com multa para quem excedesse (art. 67). Éguas soltas nas ruas também eram proibidas (art. 72).

Gado "damninho" (nocivo) não podia ser conservado na povoação ou proximidades (art. 31). Havia regras específicas para porcos encontrados na povoação (seriam mortos) e cabras/cabritos (seriam mortos, com exceções para cabras de leite marcadas e cabritos de carroça).

Foto de Lençóis Paulista no ano de 1907
ACERVO ALEXANDRE CHITTO / ARQUIVO MUNICIPAL

CONCLUSÃO

O primeiro Código de Posturas de Lençóis Paulista revela o papel central da Câmara Municipal na organização da vida social, econômica e urbana do município no período imperial. A Câmara controlava (ou tentava controlar) desde o alinhamento das ruas e a construção de casas até os comércios, a venda de gado e a manutenção de ruas e estradas.

O poder municipal se mostra através da imposição de multas, demolições e até prisões, evidenciando a importância que a instituição teve nos primórdios da cidade, agindo como legislador, fiscalizador, executor e, em diversos casos, força policial. As taxas e impostos revelam de onde deveria sair o dinheiro que manteria o poder e melhoraria a cidade, muitas vezes dois aspectos que se misturavam no cenário político.

Abaixo, você tem acesso à digitalização do documento original enviado à Assembléia Provincial em 1871, que faz parte do acervo histórico da Alesp, em São Paulo. Além disso, criamos um PDF com a transcrição dele, já que a caligrafia pode desafiar a leitura.

 

DIGITALIZAÇÃO DO DOCUMENTO ORIGINAL

TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTO

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